Trends

Nuno Gama

"O lado bom da imprevisibilidade da vida”

Diz lembrar-se de coisas de toda a vida. Nuno é ‘terra a terra’, um tanto sensitivo, um tanto espiritual. O olhar projeta-lhe mais do que a boca alguma vez poderá retratar, e estamos certos de que, numa conversa de hora e meia, o estilista tende a projetar-se telepaticamente para qualquer outra cidade do mundo, deambulando por ruas artísticas que lhe sugerem ideias para a próxima coleção. Garante não pertencer a nada ou ninguém. Mas, por momentos, vemos o menino de roupa às riscas de Azeitão. Aquele que adormecia com o livro Pelo Sonho é Que Vamos pousado na mesa de cabeceira. O que viveu rodeado de tortas de azeitão da avó Bina e que viu o amor dos pais tornar-se perpétuo. Tudo se dissipa quando voltamos ao presente, no atelier do Nuno, branco e amplo, preenchido por peças que lhe assinalam os 30 anos de carreira. Os anéis que lhe ornamentam as mãos de artista reluzem ao ritmo dos gestos, enquanto o estilista nos dá a conhecer a sua história de vida.
Dava indícios de que o seu destino poderia passar pela arquitetura, mas acabou por seguir a vertente da moda. Como é que surge esta paixão?
Surge do facto de ter deixado de ser um miúdo "normal” em tamanho para, de repente, passar a ser um camião TIR. Na altura não havia roupa para gente grande, aliás, encontrar um sapato tamanho 43 era um milagre. As calças e tudo o que fossem partes de cima ficavam curtas, nada me servia. Lembro-me de que, quando alguém ia para fora, tentava arranjar roupa para mim, isto até começar a existir a hipótese de se fazer roupa à medida. Quando me apercebi de que era possível escolher o tecido, a cor e o modelo, entendi que seria a minha vez de escolher o que queria para mim. Comecei a descobrir e a deixar-me envolver por este mundo, com a mais-valia de que desenhava desde novo, e com facilidade.  

Acredita que o modo como os seus pais o vestiam na altura influenciou a forma como interpretou, mais tarde, a moda?
Não. Eu tenho uma grande influência familiar, tenho uma família muito especial, a vários níveis. Cresci com o livro Pelo Sonho é que Vamos pousado na mesa de cabeceira. Cresci rodeado de tortas de azeitão da avó Bina. Junto de gente boa, saudável. Os meus pais amavam-se, tiveram uma paixão louca a vida inteira um pelo outro. Portanto, de alguma forma, eu considero-me abençoado e isso, claramente, marcou-me. Admito que meter-me a "mão em cima” nunca foi tarefa fácil. Não é que fosse rebelde na adolescência, mas sabia o que queria e não gostava que me dissessem que o mundo era quadrado. Para mim, o mundo era o universo inteiro e eu queria partir à descoberta dele. Ser forçado a pertencer a coisas herméticas, fechadas e de sentidos obrigatórios foi algo que nunca me agradou. Recordo-me de que, na altura, o meu pai adorava história e, então, contava-me narrativas fascinantes. Quando saía de perto dele, pegava numa caixa e fazia dela um cavalo, um barco, uma nave espacial, o que me tivesse inspirado... No sótão da casa, havia imensa roupa para me mascarar – uniformes, roupa de toureiros, coisas de todos os géneros e feitios –, o que também me alimentava a imaginação. Lembro-me de roubar aquelas varas de madeira dos estendais à minha mãe para fazer espadas e machados. Fazia também funerais aos animais. Enterrava os pardais dentro das caixas das plantas com bocados de tecido, para que não "morressem” de frio, fazia-lhes uma cruz e dava-lhes um nome. Uma vez, o meu pai ia comprar umas laranjeiras e perguntou-me se queria que fosse com ele. Acompanhei-o e, quando chegamos ao local, havia um senhor que estava a vender uma cabrinha branca, com uma trela de gato vermelha. Como eu não tinha dinheiro, não a consegui levar comigo. Entretanto, fui a casa e dirigi-me ao mealheiro para contar o que tinha. A minha madrinha ajudou-me com o montante que faltava e fui comprar a cabrita. O homem que a vendia achou tanta piada à situação que me ofereceu o animal. A cabra passou de bebé a gigante, num espaço de meses. Até que uma noite acompanhei os meus irmãos às típicas festas de garagem. Fomos num Volkswagen de um amigo, mas não me deixaram levar a cabra para dentro. Quando chegámos ao carro, a cabra tinha comido o automóvel quase todo. Ela inchou, e o estômago rebentou, acabando por morrer. Tive um desgosto enorme. Decidi fazer-lhe um funeral, até porque era um ser muito especial na minha vida. Lá convenci o meu pai a juntar-se à "cerimónia”, ainda que tivesse de ser a meio da noite (para que ninguém visse) e sem um padre. 

É natural de Azeitão, frequentou o curso de moda no Porto e desenvolveu quase toda a sua carreira no Norte do país. Atualmente, o atelier Nuno Gama situa-se na capital. Entre Porto e Lisboa, onde reside o seu coração? 
Uma boa pergunta. O meu coração reside onde sou feliz, e eu sou feliz a projetar coleções e a conviver com os clientes. 

Mas é o Norte que o inspira?
Eu não pertenço a nada nem ninguém. São 28 anos de Norte... De alguma forma, metade do meu coração é nortenho, mas não estou preso a isso. Essa parte da minha vida encaro-a como uma passagem, agora estou noutra. Hoje posso estar aqui, como amanhã não. Hoje posso inspirar-me em Lisboa, como amanhã em Viana. Aliás, neste momento, estou a elaborar uma coleção que aborda a luz da capital e incorpora, à mistura, elementos de Viana, mas que, ao mesmo tempo, também são japoneses. A piada, e pelo menos é isso que me diverte, é o modo como cozinhamos vários ingredientes e os unimos para um resultado diferente.

«Eu não pertenço a nada nem ninguém»
Traçar um percurso independente e conquistar o público foi um percurso solitário?
Claro que sim, tudo isto implica solidão. Não é uma parte da minha vida que dê simplesmente para desligar, estou sempre ligado, sempre conectado. Muitas são as vezes em que recuso sair porque tenho coisas para fazer e quero estar concentrado, e quando a nossa resposta é sempre "não” deixamos também de ser convidados. Não é que as pessoas façam de propósito, mas é normal. Falo, por isso, de uma solidão em que precisamos de silêncio e de espaço para realizar o que precisamos de realizar. Não me sinto nada mal-amado ou abandonado, apenas focado. 

É perfecionista?
Claro. 

Olhando para a primeira coleção que produziu, o Nuno de hoje faria alguma alteração?
Não, até porque a minha primeira coleção foi muito contemporânea, mesmo para os dias de hoje. Nessa altura fiz um catálogo inspirado na ecologia e na preocupação com o planeta Terra, isto entre as décadas de 80 e 90, e, ao mesmo tempo, naquilo que é caracteristicamente português. Não me sinto saudosista, não penso no que faria de diferente no passado, mas no que melhoraria no futuro. 

Renasceu um outro estilista, depois do ano de 1998, quando o atelier Nuno Gama foi dominado pelo incêndio que apagou anos de criação?
Claro que sim. A vida é um desafio incrível e acho que tudo faz sentido sob o ponto de vista da aprendizagem e do crescimento. Sairmos deste mundo egoísta e pequenino onde, às vezes, achamos ser merecedores de tudo e que tudo depende de nós, é importante para percebermos que em duas horas tudo muda. Percebemos que não é assim porque alguém quer, mas porque a vida se encarrega de nos pôr à prova. De repente, é-nos puxado o tapete e somos questionados: "Então, percebeste agora que, afinal, não estás centrado e vais ter de ressuscitar das cinzas?”. Esse é o lado bom da imprevisibilidade da vida. 

Podia ter desistido...
Sim, pensei inclusive em suicidar-me várias vezes. E, ao refletir sobre isso, percebo que se tratou de uma prova de amadurecimento gigante. O que é que, de repente, nos faz desistir? O que é que, de repente, nos leva a uma situação destas? O ter saído desta situação – não sei se ileso, mas pelo menos mais forte – dá-me uma perceção da vida radicalmente diferente. Alterou-se a forma como perspetivo tudo à minha volta; por exemplo, antigamente fazia coleção de objetos, hoje já não tenho esse sentimento de pertença. Passei a fazer coleção das coisas apenas na minha cabeça, a colecionar memórias no meu coração. Repare, na altura, foi tudo um processo de queda: o meu pai adoeceu e acabou por falecer, e eu percebi que não queria passar muito mais tempo longe da minha família. Os meus pais sempre me apoiaram. O Porto foi importante, mas, de repente, percebi que, se calhar, devia estar perto da família. A minha mãe acabou por falecer pouco tempo depois, uma morte súbita. Ainda acho que ela morreu por saudades do meu pai. Eles estão hoje na minha memória, no meu coração, mas eu percebi que se mantêm presentes. Eu vejo-os e falo-lhes todos os dias, a qualquer instante. Isto, sim, foi uma aprendizagem, o desprender-me do material para entender que existe algo que nos conecta, algo superior e mais forte do que nós. Este é o grande tesouro da vida.

«Somos permissivos ou permeáveis a tudo o que vem do estrangeiro»
No processo criativo, segue a intuição ou é mais analítico?
Os dois. Tenho as emoções à flor da pele e sou extremamente intuitivo. As coleções chegam até mim, eu sou apenas convidado a fazer parte. Há aqui uma mística que não sou eu, que vem de algum lado e que faz com que, de repente, pumba..., as coisas comecem a fazer sentido. Em todas as coleções vou traçando um caminho à procura da essência, vou estando todos os dias à procura. Do nada, há algo que me guia. Depois de encontrar o conceito é que surge a vertente analítica, onde analiso o que é que se vende, o que é que os clientes procuram, quais os preços mais adequados, etc. 

De que modo é que as coleções da marca abraçam a sustentabilidade? 
De todas as formas possíveis e imaginárias. Também acho que há uma coisa que é importante: a forma como nos relacionamos com todos os seres vivos, que está intimamente ligada ao respeito que temos pelo próximo. Isto faz toda a diferença. É ótimo que a Comunidade Europeia esteja a introduzir uma série de leis no fabrico nacional, uma série de cláusulas em prol da qualidade de vida do planeta. Ainda assim, continuamos a ser permissivos com outras questões relevantes. Aqui, nós construímos um sistema social e económico impeditivo, regulador a nível interno, mas depois somos permissivos ou permeáveis a tudo o que vem do estrangeiro como se nada fosse. 

Apresenta o primeiro desfile independente fora do calendário do ModaLisboa, no ano em que celebra o 30.º aniversário da sua marca homónima. A que lhe sabem estas três décadas de trabalho?
Sabe a uma melancia gigante, saborosa, suculenta e cheia de memórias, sorrisos e gentes. Ao longo de 30 anos, aprendi a não dar importância ao que me incomoda, magoa ou entristece. Aliás, até tento subvalorizar as coisas boas, saudáveis e que me fazem feliz. Penso que esta é uma forma saudável de levar a vida. 

O que é que a moda portuguesa diz, atualmente, sobre a sociedade?
Acho que temos várias leituras. Nós, quando trabalhamos nos desfiles, incluímos pessoas de todos os géneros e feitios, cada vez mais. Acho, sim, que andamos aqui um bocadinho à procura de qualquer coisa, diria. Sobre os outros, tenho dificuldade em falar, mas, sobre mim, sei que quero continuar a fazer aquilo de que mais gosto. Continuo fascinado com o empoderamento masculino, com a virilidade (apesar de ser contra o machismo). Ainda procuro também pelo que é isto de se ser português. Porque é que somos assim? Porque é que temos esta fronteira e porque é que não é mais para a direita ou mais para a esquerda? Porque é que a nossa comida é diferente, porque é que a nossa língua é diferente? Os meus amigos estrangeiros dizem que os portugueses são especiais, devido a uma série de traços socioculturais que nos distinguem. Isto intriga-me e gostava de tentar perceber.

«Não penso no que faria de diferente no passado»
O que é que internacionalmente se diz sobre a moda portuguesa?
Pouco. Desconhecimento, falta de presença e falta de investimento nacional. Assunto complicado. 

Olha para a moda do futuro como uma indústria que não vê géneros?
Espero bem que não. Sinceramente, acho que tudo é possível. Uma coisa é certa, quando observamos a história da humanidade, percebemos que há sempre uma oposição mais forte que nos vem equilibrar. Nós gostamos de nos desequilibrar para nos equilibrarmos novamente, é algo que faz parte da humanidade. Mas acho que não faria muito sentido uma moda que não visse géneros, até pela nossa continuidade, porque, no dia em que deixarem de existir homens e mulheres para procriar, acaba tudo. Agora, quero acrescentar o seguinte: cada um vive como bem entender. Se eu tenho liberdade de ser quem sou, então, também tenho de respeitar os outros. Não temos de ser todos iguais. 

O que faz quando a inspiração não surge?
Vou dar uma volta. Já estou habituado a lidar com isso. Na verdade, acho fascinante este processo de não saber o que fazer e, de repente, tudo começar a fazer sentido.  

Se o seu processo criativo fosse uma música, qual é que seria?
Cristo Redentor, dos Lemon and Soul. Quando a oiço visualizo coisas, mesmo à minha frente. Ações, movimentos, pessoas, no fundo a elevação do espírito a algo transcendente. 

Quando não veste Nuno Gama opta por usar marcas portuguesas ou internacionais?
Quando não visto Nuno Gama, visto Nuno Gama.  

Nesta fase da vida, o que está ainda por realizar a nível pessoal e profissional?
Queria muito criar uma gama de perfumes e uma linha de cosmética para homem. A nível pessoal, gostava de encontrar o amor novamente. E acho que, aí, ficava com uma bateria imbatível para levar o mundo à minha frente.
Joana Rebelo
T. Joana Rebelo
F. Nuno Almendra

Publicidade

Política de Cookies

Este site utiliza Cookies. Ao navegar, está a consentir o seu uso. Saiba mais

Compreendi